quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O Alienista



CONTO ou NOVELA?

Para muitos críticos, O Alienista se classifica como uma novela; sem dúvida, levados pelo número de páginas que em algumas edições, chega a mais de oitenta. "Outros, conduzidos pela análise íntima da narrativa", como observa o crítico Massaud Moisés, "classificam-na entre os contos machadianos, no que estão certos" – conclui o crítico (p. 173).

Com efeito, apesar do número grande de páginas, não há razão para classificar o livro como novela: faltam-lhe as características fundamentais da novela, que podem ser resumidas assim:

grande número de células dramáticas, o que não existem em O Alienista;

preocupação pelo enredo, onde a análise ocupa um lugar secundário;

superficialidade de caracteres, visto que a preocupação do autor é contar a estória;

jogo da intriga embaralhada para manter acesa atenção do leitor.

Como se vê, essas características inexistem em O Alienista, o que afasta a hipótese de novela. Aliás, como ressalta Massaud Moisés, "se fosse novela, seria a única que a pena de Machado de Assis escreveu, quando sabemos, pelas características fundamentais da novela (---), que seu talento era infenso a tais preocupações. É um conto, dos mais extensos que escreveu mas conto apesar disso, pois o número de páginas é pormenor secundário para classificar a obra" (op cit p. 173).

O Conto como Espécie Literária

De um modo geral, a primeira idéia que nos ocorre quando pensamos em conto é de que se trata de um narrativa curta, onde a estória se desenvolve linearmente, com princípio, meio e fim, abolindo-se os pormenores secundários. A ação tem que ser incisiva e direta, numa linguagem essencialmente narrativa.

Em síntese, dir-se-ia que o conto, na sua estrutura tradicional (como é o caso de machado de Assis), constitui uma unidade dramática, ou seja, contém um só conflito, um só drama, uma só ação. O contista não nos dá a visão da vida na sua totalidade, mas procura nela um momento singular, representativo; um "flash" apenas. Por esta razão, jamais se prolonga, prendendo-se ao episódio em foco, não se perdendo o autor na análise detalhada dos fatos. Aliás, é o próprio Machado de Assis quem nos lembra esta característica do conto, quando escreve em O Alienista.

"O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parente e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito" (po cit p. 223).

Se machado quisesse escrever uma novela, certamente se alongaria "descrevendo festas". Mas não; tinha consciência das características do conto e não foi além do necessário. Aliás, a este propósito é digna de nota ainda essa outra passagem do livro, onde o narrador escreve.

"O desfecho deste episódio da crônica intaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa..." (op cit p. 229).

O Conto Machadiano

Machado de Assis é, sem dúvida, um dos maiores nomes do conto na Literatura Brasileira. Pode-se mesmo dizer que chegou a formar "escola", visto que são muitos os contistas que seguem a sua linha.

Desde os primórdios de sua vida literária, Machado de Assis demonstrou inclinação para o conto, dada a tendência que sempre revelou para os ingredientes que caracterizam esse gênero: "concisão do pensamento, sutileza de idéias e sobriedade de estilo, que o habilitavam a exercer perfeitamente a engenhosa arte do conto", - afirma Eugênio Gomes (in "Nossos Clássicos", Agir, 1970, vol. 70, p. 7).

A sua maturidade como contista, entretanto, ele só a alcança na década de 1880, após a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando escreveu "quase metade de usa produção total": "A década de 1880, diz Eugênio Gomes, é, às claras, o período culminante do conto machadiano, por ser aquele em que, pelas encontradas perspectivas da sua cosmovisão e pela força criadora do estilo, o artista se encontrava na plenitude de seus poderes de idealidade e de expressão. Entrara a predominar, um novo e insólito elemento: o humorismo irônico, que tem por centro de irradiação as Memórias Póstumas de Brás Cubas" (op cit p.9).

Em geral, os contos machadianos dessa época se caracterizam pela ironia satírica às criações contemporâneas da filosofia, da ciência e da política, revelando o escritor "um ar entediado de quem já houvesse perdido mais ou menos completamente a ilusão do homem". São muitos os contos em que o cientificismo naturalista da época vem satirizado: "Conto Alexandrino" (1883); "Verba Testamentária" (1882); "A Sereníssima República" (1882) e o nosso "O Alienista" (1881). Como observa Eugênio Gomes, foi um tema "muito explorado pelos principais contistas do século XIX. Gogol, Tolstoi, Tchecof, Maupassant todos escreveram narrativas sobre alienados mentais" (op. Cit. P. 12). Em Machado de Assis, além dessa linha irônico-satírica, sobressai também a de psicologia individual ou social.

Assim como os romances, os contos de Machado de Assis também podem ser em duas fases: na primeira, fase caracterizadamente romântica, sobressaem: Contos Fluminenses (1870); Histórias da Meia-Noite (1873). Da Segunda, onde predominam os ingredientes da escola realista, pode-se citar: Papéis Avulsos (1882); Histórias sem Data (1884); Várias Histórias (1896); Relíquias da Casa Velha (1906). O nosso "O Alienista", como já dissemos, é um dos integrantes de Papéis Avulsos.

Enredo

Para delinear o enredo de O Alienista, vamos dar a palavra a Vianna Moog, autor de Heróis da Decadência (Ed. Civilização Brasileira S. ª RJ, 1964, p. 132-136):

Simão Bacamarte, o alienista, nasceu com a paixão da ciência. Filho da Vila de Itaguaí, estudara em Coimbra e Pádua, regressando para cá com fama de maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas.

A ciência era o seu universo. Na medicina, impressionara-o principalmente o recanto psíquico – a patologia cerebral Dominado por um sentimento humanitário, achou ele de construir uma casa para alienados, a qual tomou o nome de Casa Verde. O emprenho máximo de Simão era aprofundar o estudo da loucura até o ponto em que pudesse penetrar a causa do fenômeno e descobrir o remédio universal.

Não lhe faltava campo para investigações. A Casa Verde ia alojando os loucos de Itaguaí, bem como os dos lugares vizinhos, e dentro em pouco, furiosos, mansos, monomaníacos, formavam já uma pequena povoação. A variedade impressionou vivamente o Dr. Simão Bacamarte. Com o tempo, uma profunda teoria entrou a trabalhar-lhe o cérebro. Era uma dessas grandes teorias capazes de alargar os horizontes e as bases do universo.

Crispim Soares, o boticário, foi o primeiro a gozar as honras da iniciação na teoria do alienista, que o recebeu para a entrevista "com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspecção até o pescoço" (op. Cit. P. 183).

Na opinião de Bacamarte, a demência abrangia uma vasta superfície de cérebros. --- "Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia". (op. Cito. P. 193).

Uma vez que a razão devia ser o perfeito equilíbrio de todas as faculdades, a casa Verde estava destinada a ser a morada do mundo. E assim efetivamente começou a ser. "A loucura, objeto de meus estudos, explicava o alienista, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. " (op. Cit. P. 191). Este era recolhido porque, herdando uma fortuna que lhe daria para viver até o final dos tempos, entrou a dividi-la com os amigos, sem usura. Aquele, porque, subindo de simples albardeiro a grande proprietário, passava horas e horas a admirar a sua casa, a mais bela e suntuosa de Itaguaí. No primeiro viu o alienista a configuração moral do mentecapto; no segundo, o amor das pedras, moléstia de cunho histórico. E assim, numa semana, vinte pessoas das principais da vila, foram recolhidas à Casa Verde. Novos pavimentos já não comportavam a população dos alienados do Dr. Bacamarte. A coletânea tornou-se dentro em pouco desenfreada. Num, que tinha o hábito de cumprimentar a toda a gente, descobriu o alienista a "vocação das cortesias". Outro era recolhido porque dera curso a uma mentira. Outro porque a divulgara. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, "ninguém escapava à vigilância do alienista".

Até Dona Evarista, mulher do alienista, foi recolhida à Casa Verde.

Tal situação acabou por acirrar os ânimos e provocou, na vila, uma rebelião. Era preciso derrubar o tirano e destruir a Casa Verde. Liderados pelo barbeiro Porfírio, a câmara foi deposta e o governo da cidade foi entregue ao "ilustre Porfírio". Este seria deposto também por outro barbeiro, numa manobra rápida e fulminante.

Um dia, contudo, Itaguaí acordou sobressaltada. Todos os loucos da Casa Verde iam ser postos na rua. Simão bacamarte oficiara à câmara municipal, comunicando haver verificado das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento. Nestas condições, fora obrigado a reconsiderar a sua teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não se manifestasse perfeito. "Desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto." (op. cit. p. 222).

Depois disso, todos passaram a acreditar na lealdade do alienista e a vida política da vila se normalizou.

Desta vez, a influência à Casa Verde foi muitíssimo menor. Ainda assim apareceram alguns exemplares. Um dos vereadores da câmara, o vigário da vila e alguns outros. Um advogado esteve a pique de ter o mesmo destino. Nele Simão Bacamarte descobriu tal conjunto de qualidades morais e mentais, que era perigoso deixá-lo na rua. Preparou-lhe uma prova de honestidade e as qualidades do advogado foram totalmente anuladas. "O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade" (op. cit. p. 228).

Os novos reclusos foram, convenientemente, alojados por classes. Aqui era a galeria dos modestos. Ali, a dos tolerantes. Além, a dos íntegros. Vinham depois os verídicos, os leais, os magânimos, os sinceros, todos agrupados conforme a qualidade predominante.

Já estava em tempo de atacar a ciência pelo lado da terapêutica. Simão Bacamarte, neste ponto, revelou qualidades excepcionais. As curas foram pasmosas pela rapidez, Combatia o mal colocando à prova a qualidade moral predominante. Ninguém conseguiu escapar à eficiência dessa terapêutica...

"Houve um doente poeta que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a despertar da cura, quando teve a idéia de mandar correr a matraca para o fim de o apregoar como um rival de garção e de Píndaro. – Foi um santo remédio". (op. cit. p. 230).

O vereador "Tão cruelmente afligido de moderação e eqüidade teve a felicidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interceptação corrompendo os juízes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se nesse lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura; foi a simples vis medicatrix da natureza" (op. cit. p. 231).

Também o vigário, submetido a uma prova, viu por água abaixo as suas piedosas e sacramentadas virtudes morais e espirituais. Assim também a mulher do boticário e todos os outros. A Casa Verde estava de novo vazia.

Mas estas curas tão fáceis incutiram uma terrível suspeita no espírito do alienista. Estariam eles de fato doidos? Teria sido dele a cura? "Ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?" (op. cit. p. 233) "Sim eu Não posso Ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra existiam no estado latente, mas existiam" (op. cit. p. 233).

Começava a dúvida. Entretanto não se conformava o alienista que em Itaguaí não houvesse nenhum cérebro concertado. Daí a considerar-se a si mesmo o detentor do perfeito equilíbrio foi uma passo.

"Sim, há de ser isso, pensou ele. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, e a lealdade, todas as qualidades enfiem que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.

Nenhum defeito?

Nenhum, disse em coro a assembléia.

Nenhum vício?

Nada

Tudo perfeito?

Tudo." (op. cit. p. 234)

Estava ali um espécime raro, um espírito perfeitamente equilibrado, um homem dotado de todas as qualidades morais e mentais, - um autêntico, um verdadeiro mentecapto, um alienado que gravitava em volta da carcomida e corrompida humanidade.

"Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ao contínuo, recolheu-se à Casa Verde" (op. cit. p. 234).

Não era possível levar mais longe que Machado de Assis o arrasamento da razão e das teorias que a proclamavam o último reduto de todas as verdades – conclui Vianna Moog.

Estilo da Época

Embora não se possa prender Machado de Assis às delimitações de um estilo de época, parece-nos ponderável em O Alienista o estilo de época realista a que Machado, indiretamente, estava ligado.

Como você deve saber, a base cultural e histórica do Realismo é a ciência, que dominou as atenções na Segunda metade do século XIX, chegando mesmo a adentrar no século XX. Varreu o mundo uma onda impetuosa de materialismo, como o positivismo de Conte, o evolucionismo de Darwin, o psicologismo de Wundt, o determinismo de Taine, que se alastra pelo espírito humano como uma verdadeira paixão. Nasce daí o gosto pela análise (psicológica ou sociológica), a objetividade, a observação, a fidelidade, a impassibilidade, a impessoalidade, etc. que são as características dominantes no Realismo. A preocupação na literatura era mostrar a realidade, formando-lhe um retrato fiel e preciso. Neste sentido, pode-se dizer que o Realismo foi um estilo engajado-vetado para a realidade, assumindo uma atitude polêmica e crítica em relação à sociedade burguesa de então e aos valores apregoados pela época. Em suma, como chegou a afirmar Eça de Queiroz, "o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade."

1) A grande característica realista em O Alienista é, sem dúvida, o tom satírico e irônico que perpassa a obra, numa crítica ao mesmo tempo veemente e humorística dos valores científicos da época. Aqui Machado se volta, impiedosamente, contra a tirania cientificista do Dr. Simão Bacamarte, tirania essa que vem configurada no próprio nome do doutor (="bacamarte"). É o que observa Eugênio Gomes quando afirma: "n’ O Alienista o Dr. Simão Bacamarte, já caracterizado pelo sobrenome, institui a ditadura da ciência com um autoritarismo feroz, que revela as duas faces da sátira: a da monomania ideológica e a da crueldade do homem contra o homem em nome de princípios sagrados" (op. cit. p. 12). "Se o Humanitismo importa num libelo aos sistemas filosóficos da passada centúria, O Alienista constitui a maior invectiva já feita às suas convicções científicas." Afirma Vianna Moog (op. cit. p. 132).

Mas a sátira do conto não se volta apenas contra a ciência. Está patente também no livro a figura do barbeiro que encarna a figura dos chefes políticos. E dos ápices de ironia e sarcasmos cheio de humor a passagem em que Machado de Assis narra a tomada do governo pela força das circunstâncias, quando se invertem os papéis de modo ridículo e cômico. Aliás, episódio semelhante aparecerá no romance Esaú e Jacó com a "Tabuleta do Custódio", quando o Brasil passa de Império e República.

2) Além deste ingrediente bem próprio do Realismo, pode-se observar ainda no livro a preocupação em narrar a estória com espírito de objetividade e impessoalidade, apresentando com fidelidade os fatos contidos nas "crônicas": "Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem Ter podido alcanças nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí". (ob. Cit. p. 135).

3) Da perspectiva do Dr. Bacamarte, o gosto pela análise se acha configurada com diversas passagens. O doutor era homem de ciência, como se sabe, e a sua abordagem de realidade tinha que ser, obviamente, dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto a livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais" (op. cit. p. 207).

Evidentemente por se tratar de conto, seria até mesmo incoerente a presença de elementos que exemplificassem o gosto pelo detalhe ou a preocupação em analisar, por parte do escritor. Esses aspectos são mais freqüentes no romance onde o campo lhes é mais propício.

Estilo Machadiano

A mensagem transmitida por Machado de Assis em seus livros tem sempre como veículo de expressão um estilo inconfundível, marcado pelo humor e pela ironia, numa linguagem sempre correta e bem cuidada, além de sóbria e apurada.

1) Posto como irradiação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Alienista herdou desse romance o gosto pelo humor, pela ironia, pela sátira, pelo sarcasmo. Como as Memórias, O Alienista é também escrito "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Todo o livro pode ser colocado como exemplo desses ingredientes, mas vamos lembrar alguns episódios como ilustração.

Dentre outros exemplos que o livro oferece, basta ver o jeito como o alienista escolhe a esposa para perpetuar a dinastia, justificando assim a escolha a um tio, visto não ser a eleita (= D. Evaristo) muito bonita: "Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes" (op. cit. p. 179).

Apesar da escolha criteriosa (quase científica), D. Evarista não lhe deu nenhum filho: "D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos" (P. 180), embora o doutor tivesse feito "um estudo profundo da matéria" e enviado "consultas às universidades italianas e alemãs"...

Outro exemplo claro é a resposta que o alienista dá ao rei de Portugal desejoso de prendê-lo na metrópole para usufruir de seus conhecimentos:

"- A Ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo" (op. cit. p. 179)

Carregado de humor e ironia é o episódio do barbeiro, que foi recolhido à Casa Verde por Ter liderado a rebelião que depôs a "Câmara", e, recolhido uma Segunda vez, por manifestar-se indisposto (um ato de lucidez) a participar-se de uma Segunda rebelião: "Preso por Ter cão, preso por não Ter cão! Exclamou o infeliz" (op. cit. p. 229).

2) Outra constante no estilo de Machado de Assis é o gosto pelas citações que comprovam algum pensamento que quer transmitir ou servem de suporte a alguma ironia ou idéia. De qualquer forma, as citações sempre constituem uma dificuldade para o leitor mediano e refletem a espantosa cultura machadiana, apesar de seu autodidaticismo. Ai estão personalidades, referências históricas ou literárias que precisam ser pesquisadas. Às vezes, até citações em outras línguas como a que aparece no cap. V, extraída da Divina Comédia, de Dante Alighieri: "La boca sollevò dal fiero pasto".

Quel "seccatore" ... ("A boca suspendeu do fero alimento aquele pecador...").

E as freqüentíssimas citações latinas:

"Sed victa Catoni" (cap. VIII): "Mas para Catão a causa estava perdida";

"Plus ultra!" (cap. XIII): "Mais além!" (= nunca estar satisfeito).

"Vis medicatrix" (cap. XIII): "Força curativa".

3) Como sempre mostramos em nossos trabalhos, outra coisa sempre presente no estilo machadiano são as referências bíblicas, o que atesta que a Bíblia era realmente, "o seu livro de cabeceira", como testemunha Massaud Moisés.

Em mais de um lugar, elas podem ser constatadas, como no cap. II, ao referir-se ao "dito de S. Paulo aos Coríntios", ao episódio da "Torre de Babel", ao rei "Davi"; e no cap. III, quando se refere ao "óleo do Cântico" e ao "sonho do hebreu cativo".

4) Outra coisa que sempre chama a atenção na leitura de Machado de Assis é o "status" das suas personagens: em geral, são pessoas bem estabelecidas na vida cujo único trabalho é serem personagens de Machado de Assis. É claro que isto reflete ao padrão de vida da sociedade de então – caracterizadamente burguesa. Aliás, como quer Gustavo Corção, reflete também qualquer coisa do escritor: "Como homem e cidadão, Machado de Assis é um genuíno representante da sociedade liberal burguesa, e há de ser por isto que, insensivelmente, inconscientemente, o trabalho não entra na dinâmica de sua ficção".

Estrutura da Obra

1) Como já afirmamos atrás, trata-se de um conto um tanto longo, estruturado em treze capítulos.

2) Quanto à montagem, é interessante observar que Machado de Assis se fundamenta em possíveis "crônicas". Observe que, com alguma freqüência, ele se refere aos "cronistas" e às "crônicas da vila de Itaguaí" como, aliás, tem início O Alienista: "As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas." (op. cit. p. 179).

Também o fecho do conto apresenta a mesma referência: "Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem Ter podido alcançar nada" (op. cit. p. 235).

3) "O tempos remotos" a que se referem as crônicas, pelas indicações dadas, se remontam à primeira metade do século XVIII (= reinado de Dom João V).

4) A ação transcorre, como já se viu, em Itaguaí, "cidadezinha do Estado do Rio de Janeiro, comarca de Iguaçu", conforme declara o crítico Massaud Moisés em nota de pé-de-página da edição que estamos consultando.

5) A narrativa é feita em terceira pessoa, com o narrador fundamentado nas aludidas crônicas.

6) Para um conto, há personagens demais em O Alienista. É evidente que a ação se desenvolve em torno do Dr. Simão Bacamarte, não passando as outras de personagens referenciais.

Vamos fazer, a seguir, uma relação das principais:

a) Dr. Simão Bacamarte: é o protagonista da estória. A ciência era o seu universo – o seu "emprego único", como diz. "Homem de Ciência, e só de Ciência, nada o consternava fora da Ciência" (p. 189). Representa bem a caricatura do depotismo cientificista do século XIX (como está no próprio sobrenome). Acabou se tornando vítima de suas próprias idéias, recolhendo-se à Casa Verde por se considerar o único cérebro bem organizado de Itaguaí.

b) D. Evarista: é a eleita do Dr. Bacamarte para consorte de suas glórias científicas. Embora não fosse "bonita nem simpática", o doutor a escolheu para esposa porque ela "reuni condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem", estando apta para dar-lhes filhos robustos, são e inteligentes" (p. 179). Chegou a ser recolhida à Casa Verde, certa vez, por manifestar algum desequilíbrio mental.

c) Crispim Soares: era o boticário. Muito amigo do Dr. Bacamarte e grande admirador de sua obra humanitária. Também passou pela Casa Verde, pois não soube "ser prudente em tempos de revolução", aderindo, momentaneamente, à causa do barbeiro.

d) Padre Lopes: era o vigário local. Homem de muitas virtudes, foi recolhido também à Casa Verde por isso mesmo. Depois foi posto em liberdade porque sua reverendíssima se saiu muito bem numa tradução de grego e hebraico, embora não soubesse nada dessas línguas. Foi considerado normal apesar da aureola de santo.

e) Porfírio, o barbeiro: sua participação no conto é das mais importantes, posto que representa a caricatura política na satírica machadiana. Representa bem a ambição de poder, quando lidera a rebelião que depôs o governo legal. Foi preso na Casa Verde duas vezes; primeiro, por Ter liderado a rebelião; segundo, porque se negou a participar de uma Segunda revolução: "preso por Ter cão, preso por não Ter cão" (pág 229).

Outros figurantes aparecem no conto. Cada um representando anomalias e possíveis virtudes do ser humano. Há loucos de todos os tipos no livro. Daí a presença de tanta gente...

Problemática Apresentada

Embora no século passado, a obra machadiana se revela sempre atual, visto que a problemática apresentada pelo autor tem sentido universal: são os eternos problemas humanos que Machado, na sua visão aquilina, analisa de maneira profunda e pungente. "E vão assim as cousas humanas!" – exclama ele no cap. XI. As cousas humanas de qualquer época, porque as verdades patéticas e pungentes que envolvem a espécie humana não envelhecem. Talvez envileçam. Os séculos correm e é sempre a mesma loucura, numa repetição cada vez mais acelerada e alucinante.

Não será a Psiquiatra ou a Psicanálise moderna uma réplica da Ciência do Dr. Bacamarte? Será que a Casa Verde caberia os loucos do mundo atual! Itaguaí, sem dúvida, é apenas uma metonímia...

E o barbeiro? Não encarnaria ele as pretensões políticas de tantos regimes que alastram pelo mundo, sobretudo na nossa malfadada América Latina? Há tantos exemplos de governos que sobem e descem como o barbeiro...

Como se vê, O Alienista é de uma flagrante atualidade. Mas não é a realidade brasileira ou fluminense. Já afirmamos que Itaguaí é apenas uma metonímia: na verdade, o fenômeno é universal, - o que parecia "uma ilha" era, na verdade, "um continente", como começava a suspeitar o Dr. Bacamarte.

Bem, parece-nos que dois aspectos são ponderáveis em O Alienista, colocados, na visão machadiana, satiricamente:

1) A sátira mais clara é ao cientificismo da época, configurada no Dr. Simão Bacamarte, como temos mostrado com certa insistência. Sob o despotismo cientificista do Dr. Bacamarte, a população de Itaguaí ia capitulando impiedosamente. Em nome da Ciência, "quatro quintos da população estavam aposentados na Casa Verde" (p. 222). Implantou-se o terror na cidadezinha. "Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doudo" (p. 202). A Casa Verde chegou a ser considerada "um cárcere privado" por um médico sem clínica, dadas as excentricidades cientificistas do Dr. Bacamarte. A situação chegou a tal ponto, que, liderada pelo barbeiro, eclodiu uma rebelião em Itaguaí. A Casa Verde se tornara a "Bastilha da razão humana." Era preciso destruí-la. Era preciso destruir o Dr. Bacamarte.

"- Morra o Dr. Bacamarte! Morra o tirano!" (p. 207).

"- Abaixo a Casa Verde!" (p. 208).

Os ânimos se serenaram quando o Dr. Bacamarte "recolheu à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe, menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à Ciência" (op. cit. p. 221).

Mas o inesperado haveria de acontecer nas experiências científicas do Dr. Bacamarte: revendo a sua teoria a respeito da loucura, o doutor chegou a conclusão sensata (quase toda a população de Itaguaí estava encerrada na Casa Verde) de que tinha que "admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto" (p. 222). Quer dizer, seria considerado louco agora todo aquele que manifestasse, "perfeito equilíbrio das faculdades mentais": num mundo de mentecaptos "louco" seria quem manifestasse alguma virtude, "um cérebro bem organizado".

Mais uma vez em nome da Ciência, o Dr. Bacamarte procedeu à nova caça cientificista: o padre Lemos, um juiz-de-fora, um vereador honesto, um antigo rival que manifestou "retidão de sentimentos, boa fé, respeito humano e generosidade" (p. 226) a mulher do boticário que revelara alguma "beleza moral", e mais alguns espécimes raros que viviam em Itaguaí.

Colhido o material, o doutor procedeu à análise dos exemplares e ao paciente trabalho da cura dos pacientes: "cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo" (p. 231). Nenhuma virtude dos "equilibrados morais ou mentais" conseguia resistir às provas a que os submetia o Dr. Bacamarte. A todos, o alienista ia restituindo a liberdade, depois de demonstrar "o perfeito desequilíbrio do cérebro" (p. 233) de cada um deles. Todos voltavam à louca e alucinante vida normal de cada dia! Será que "não havia loucos em Itaguaí?" "Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado?" (p. 233). O Dr. Bacamarte ia chegando a essas conclusões. O trabalho da Ciência tinha sido em vão. A Ciência não conseguiu alterar a rota alucinante da Humanidade!

E, entre alegre e triste, o Dr. Bacamarte chegou a conclusão de que o único "cérebro bem organizado" em Itaguaí era o dele. Submetido à prova, o doutor se revelou como o único possuidor de "um perfeito equilíbrio das faculdades mentais e morais". Estava comprovado: O Dr. Bacamarte era o único louco de Itaguaí. E, "com os olhos acesos de convicção científica", o Dr. Simão Bacamarte, o mais ilustre dos sábios dessas pairagens, recolheu-se, solenemente à Casa Verde: era uma exigência da Ciência...

Por trás da sátira machadiana, escondem-se os eternos e pungentes dramas humanos: é o homem na sua caminhada pela vida fora, numa corrida louca e insensata. "Mais do que uma história, diz Massaud Moisés, O Alienista é uma interpretação condensada na angústia do homem em face de sua condição de alienado na terra onde vive e sua prisão apenas desfeita pela morte ou pela loucura impiedosa. É o problema do homem de sempre em face das mesmas interrogações; que é certo, que não é? A verdade? Quem está isento? Que vale, que não vale?" (op. cit. p. 174).

No gesto derradeiro do Dr. Bacamarte, mais uma ironia profunda de Machado de Assis: num undo de mentecaptos e alienados, só os lúcidos (= os que têm perfeito equilíbrio mental e moral) são os verdadeiros loucos!

2) A Segunda sátira machadiana é de caráter político e se concentra na figura do barbeiro Porfírio que, eferamente, se tornou "o protetor da vila ( de Itaguaí) em nome de Sua Majestade e do povo". Seu objetivo era "libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte" (p. 213). Seu reinado, entretanto, dura pouco, sendo deposto por outro barbeiro, numa manobra rápida e fulminante.

A maneira como Machado de Assis narra os fatos é bastante humorística dentro do contexto da obra. Aliás, em outro livro – ESAÚ e JACÓ – a mudança de regime por que passava o Brasil (Império -> República) recebe tratamento idêntico: da noite para o dia, o Brasil mudara de regime, tão rapidamente, como quem muda de roupa. O episódio de Itaguaí, sem dúvida, não desmente as nossas tradições políticas e revolucionárias. Nem mesmo desmente as tradições do belicoso povo latino-americano. Estão aí os exemplos atuais: quase que diariamente se vê governo que cai e outro que sobe nos países latino-americanos. E o pior é que, muitas vezes, o poder cai nas mãos de mentecaptos, como esse barbeiro do conto, que pouca coisa entende além da navalha e da barba... Levados pela ambição do poder e pelas circunstâncias do momento, se elegem como ditadores vitalícios em defesa dos ideais democráticos e da ordem, em manobras rápidas e fulminantes.

Mais uma vez, a visão profética de Machado de Assis sobre a espécie humana se revela válida e sempre atual. O fenômeno, igualmente, não é brasileiro, nem mesmo latino-americano. O fenômeno é, sem dúvida, universal: Idi – Amim, o exótico presidente de Uganda, que o diga!

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